quarta-feira, agosto 01, 2012

A Banheira de S. João da Foz do Douro

Vamos a banhos!

Perde-se no tempo o aparecimento figura do banheiro, associada aos banhos de mar um pouco por todo o país, cuja época áurea ocupa toda a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX.
No entanto, esta era atividade exclusivamente masculina, com exceção da praia de S. João da Foz do Douro.
Guilherme Braga, em 1869, na sua obra “O Mar da Delfina”, descreve, sucintamente, sob a forma de poema, a Custódia como «…. uma das mais antigas e afamadas banheiras de S. João da Foz».
A banheira, robusta e vigorosa, é-nos apresentada por Ramalho Ortigão, no “Álbum de Costumes Portugueses” de 1881, como proveniente «…de uma estirpe de outras banheiras, e constitue pelos seus caracteres heriditários uma casta distincta…», sendo que «…sem esse privilégio selectivo, de nascença, nenhuma mulher tomaria por offício dar banhos, passando oito ou nove horas por dia, durante quatro meses do anno, mettido no mar até ao peito».

Eduardo Sequeira, na obra “Á beira mar”, de 1889, dá-nos a sua impressão sobre a banheira, uma «…serviçal em extremo e sabe, com uma arte especial captivar a simpatia de todos, das crianças a quem anima, da rapasiada com quem confraternisa alegremente, e dos velhos cercando-os de considerações e respeitos, prodigalisando-lhes cuidados e confortos».
Alberto Pimentel, em 1893, na sua obra “O Porto Há Trinta Anos”, escreve sobre a banheira dizendo serem «.. algumas d´ellas raparigas bonitas e fortes», e Ramalho Ortigão na obra supra citada, completa, referindo que a sua diferença se impôs «…pelo trajo, pelas attitudes, pela expressão physionomica, pelo sorriso, em que o vermelho vivo das gengivas e o branco pérola dos dentes lembra uma frescura de guelra e a respiração salgada cheirando a sargaço, pelo olhar límpido e profundo…», descrevendo a fisionomia da sua banheira, Anna da Luz, e afirmando «…ficou-me para sempre, e ainda n´este momento a vejo, septuagenaria, alta e espadaúda, o cabello quasi todo branco, a face enrugada e brunida pelo sol, os grandes olhos mansos e ternos, as mangas arregaçadas, a saia de braqueta sempre molhada até à facha que lhe cingia a cintura, o chale de malha côr de pinhão trespassado no peito.».

Quanto ao trajo, um artigo no jornal “O imparcial da Foz”, de 18 de Setembro de 1904, refere que os «Banheiros e Banheiras, com os trajos profissionaes, largas toalhas aos hombros e bilhas com água nas mãos, crusam-se pelos arruamentos formados entre os quadrados das barracas.». Por sua vez o periódico ” O Progresso da Foz”, de 29 de Setembro de 1907, acrescenta que «…o banheiro, um velho lobo do mar, vestido de negro, sem perder de vista a boia de salvação que se pendura n´um varão de ferro cravado na areia, vela cuidadosamente pelos banhistas mais temerarios que tentam afastar-se da praia, e reprehende-os com benigna severidade.»
Vamos agora falar do dia da banheira e para isso, começamos por uma passagem da obra citada de Ramalho Ortigão, em que «…de madrugada, ao armar das barracas, quando ellas, accordadas com os primeiros massaricos prateados que debicam a salsugem da maré, entôam em côro de sopranos uma das muitas barcarolas locaes, uma aguda palpitação de poesia festival e triumphadora preenche o ar…»

O meio de transporte utilizado pelos banhistas para se deslocarem das suas casas para a praia dos banhos foi variado ao longo dos tempos, tendo sido primeiro utilizado o jumento, o carroção, o americano e, mais próximo de nós, o eléctrico. Sob a primeira forma de transporte fala-nos Alberto Pimentel, na obra supra citada, que «… os jumentos eram um meio de locomoção muito usado ainda no Porto para a jornada da Foz. Pessoas conhecidas umas das outras organizavam burricadas, que partiam de madrugada e iam choutando à beira do rio por entre nuvens de pó. De vez em quando, as senhoras cahiam dos burros, e toda a caravana parava à espera que se removesse aquelle vulgar incidente. Depois continuavam a jornada até à praia dos banhos onde os burros ficavam descançando enquanto as pessoas que elles haviam transportado iam tomar banho. Estas caravanas que chegavam ou que partiam, contribuíram para animar o espectáculo da praia dos banhos».
Segundo o jornal “O Progresso da Foz”, de 29 de Setembro de 1907, «… cada comboio que despeja na praia uma multidão de banhistas, que vae descendo até à beira-mar conversando ruidosamente, n´uma alegria communicativa, como que anteposando a sensação deleitosa d´um banho n´aquelle mar tão azul. Raparigas aos banhos, com leves vestidos claros, riem e chalaceiam, n´uma grazinada jovial e infantil.».

Sobre esta paisagem, o jornal “O imparcial da Foz, de 18 de Setembro de 1904, revela que «…os banhistas vão chegando, ainda com caras somnolentas e pouco animadas, parece tiritando de frio, entram nos pequenos cubiculos de lona, e vagarosamente, vão fazendo a toilette com que se hão-de apresentar ao velho deus Neptuno».
O facto de os banhistas irem a banho de madrugada deve-se, tal como diz o Sr Domingos Picão, sobrinho de banheiras de S.João da Foz, a estes se tomarem em jejum. O período de tempo, receitado pelo médico, para ir a banhos era geralmente, como refere em 1889, Eduardo Sequeira, na sua obra já citada, «…de vinte e cinco a trinta dias… não devendo o banhista tomar banho no próprio dia da chegada à praia, mas tão somente dous ou tres dias depois».

Depois de preparada a toilette para ir a banhos, e tal como descreve ”O Progresso da Foz”, de 29 de Setembro de 1907, «…principiam a sahir banhistas das barracas. Os homens, com as pernas e os braços à vela, uns enfezados e rachiticos tremendo de frio n´aquella deliciosa e amena manhã de Setembro, outros de formas musculares, quasi athleticos. As senhoras com toda a sua esthetica destruída pela deselegancia dos largos vestidos pretos guarnecidos de fitas brancas, os pés occultos em sapato de tecido fino, os cabellos setinosos domados por uma touca ornada de lacinhos. Algumas chegam às barracas com umas formas tão roliças e desenvolvidas e — oh; desilusão! — saem para o banho tão escoadas que dir-se-ia estarem as barracas povoadas de carnívoros». Da mesma forma, o jornal ” O imparcial da Foz”, de 18 de Setembro de 1904, diz-nos que «…apparecem os primeiros grupos já promptos para entrar nas selsas águas, banheiros de bilhas na mão despejam água nas cabeças dos mais nervosos, que correspondem com carantonhas capazes de metter medo ao próprio mar. Entram n´água os primeiros grupos, é signal dado para principio  da animação da praia, desde então até quasi ao meio dia, succedem-se uns aos outros, de forma que na praia d´Ourigo milhares de pessoas se banharam».

Artur Magalhães Basto, n´A Foz Há 70 anos, conta que «…mesmo em maré vaza, só os destemidos tomavam banho sem ir agarrados à mão do banheiro. E em geral os banhos demoravam apenas alguns minutos. Esperavam-se as ondas e contavam-se os mergulhos; um, dois, três!… e rua! — Quer dizer, imediatamente para a barraca».
«… Coragem e ávante!», era o dito utilizado pela banheira Rita, a quem tem medo do mar, num artigo no “Jornal do Porto” em 10 de Agosto de 1863.

Ainda n´A Foz Há 70 anos, Artur Magalhães Basto afirma conhecer  «…uma descrição da praia do Caneiro em 1873, em que surgem tipos que eu vi ainda há 20, 25, 30 anos e ainda hoje certamente aparecem. Este por exemplo : «o senhor gordo, nédio, droguista talvez». Vai tomar banho, desce solenemente a rua das barracas. Relanceia com gosto a vista pelos espectadores, todo cheio de si e da sua beleza plástica. Sonoro e enérgico, como quem dá voz de sentido a um batalhão, berra — Gamela! O banheiro traz-lhe uma gamela com água; o senhor gordo inclina a cabeça para a frente, como se fosse oferecer ao cutelo da guilhotina; e o banheiro despeja-lhe a água pela cabeça abaixo. Depois endireitando-se, bufa e avança para o mar — mas pára de repente, mal a água lhe chegou à boca do estômago».

Depois do banho tomado, “O Progresso da Foz” de 29 de Setembro de 1907, dá-nos uma impressão de como os «Banhistas saem do mar e regressam às barracas, todos muito apressados, cada prega do fato transformada em goteira, as roupas encharcadas a desenhar-lhes as formas com nitidez».

O mesmo jornal revela-nos o ambiente que se vive na praia, «sentados em pequenas cadeiras encostadas às barracas que se alinham em filas uniformes de cubos brancos, muitos banhistas conversam ou lêem os jornaes da manhã; uns esperando companheiros inseparáveis dos seus brinquedos aquáticos, outros, mais madrugadores, já refrescados pelo banho matinal, e outros que são levados à praia somente pelo prazer de admirar plásticas que se revelam mais ou menos perfeitas sob os fatos de banho, ou para trocar olhares cupidíneos com as suas Dulcinéas». Para além destes olhares cupidíneos, Alberto Pimentel, na sua obra atrás citada, diz-nos as banheiras serem «…agentes venaes de uma assídua correspondência amorosa que os Romeus e as Julietas trocavam entre si, graças à mediação interesseira das supracitadas banheiras».

O próprio Ramalho Ortigão confessou no “Álbum de Costumes Portugueses”, ter sido banheira Anna da Luz «… a alegria para o meu coração inquieto, e o contentamento para a minha alma resignada». O que é certo tal como, nos diz Alberto Pimentel, na sua obra já citada«…é que muitos casamentos vieram tramados da Foz, no fim da temporada de banhos, graças à intervenção opistolar das banheiras». É acrescenta, que no fim da temporada, «…ninguém tornava a pensar na Foz senão no estio, quando o médico aconselhava o uso de banhos do mar…».
Fontes:
RMMV [60 anos de......gratidão] 

Ramalho Ortigão in Álbum de Costumes Portugueses, 1888
Gravura de Manuel de Macedo in Álbum de Costumes Portugueses

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