Perde-se no tempo o aparecimento
figura do banheiro, associada aos banhos de mar um pouco por todo o país, cuja época
áurea ocupa toda a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século
XX.
No entanto, esta era atividade
exclusivamente masculina, com exceção da praia de S. João da Foz do Douro.
Guilherme Braga, em 1869, na sua
obra “O Mar da Delfina”, descreve, sucintamente, sob a forma de poema, a
Custódia como «…. uma das mais antigas e afamadas banheiras de S. João da Foz».
A banheira, robusta e vigorosa,
é-nos apresentada por Ramalho Ortigão, no “Álbum de Costumes Portugueses” de
1881, como proveniente «…de uma estirpe de outras banheiras, e constitue pelos
seus caracteres heriditários uma casta distincta…», sendo que «…sem esse
privilégio selectivo, de nascença, nenhuma mulher tomaria por offício dar
banhos, passando oito ou nove horas por dia, durante quatro meses do anno,
mettido no mar até ao peito».
Eduardo Sequeira, na obra “Á
beira mar”, de 1889, dá-nos a sua impressão sobre a banheira, uma «…serviçal em
extremo e sabe, com uma arte especial captivar a simpatia de todos, das
crianças a quem anima, da rapasiada com quem confraternisa alegremente, e dos
velhos cercando-os de considerações e respeitos, prodigalisando-lhes cuidados e
confortos».
Alberto Pimentel, em 1893, na sua
obra “O Porto Há Trinta Anos”, escreve sobre a banheira dizendo serem «..
algumas d´ellas raparigas bonitas e fortes», e Ramalho Ortigão na obra supra
citada, completa, referindo que a sua diferença se impôs «…pelo trajo, pelas
attitudes, pela expressão physionomica, pelo sorriso, em que o vermelho vivo
das gengivas e o branco pérola dos dentes lembra uma frescura de guelra e a
respiração salgada cheirando a sargaço, pelo olhar límpido e profundo…»,
descrevendo a fisionomia da sua banheira, Anna da Luz, e afirmando «…ficou-me
para sempre, e ainda n´este momento a vejo, septuagenaria, alta e espadaúda, o
cabello quasi todo branco, a face enrugada e brunida pelo sol, os grandes olhos
mansos e ternos, as mangas arregaçadas, a saia de braqueta sempre molhada até à
facha que lhe cingia a cintura, o chale de malha côr de pinhão trespassado no
peito.».
Quanto ao trajo, um artigo no
jornal “O imparcial da Foz”, de 18 de Setembro de 1904, refere que os
«Banheiros e Banheiras, com os trajos profissionaes, largas toalhas aos hombros
e bilhas com água nas mãos, crusam-se pelos arruamentos formados entre os
quadrados das barracas.». Por sua vez o periódico ” O Progresso da Foz”, de 29
de Setembro de 1907, acrescenta que «…o banheiro, um velho lobo do mar, vestido
de negro, sem perder de vista a boia de salvação que se pendura n´um varão de
ferro cravado na areia, vela cuidadosamente pelos banhistas mais temerarios que
tentam afastar-se da praia, e reprehende-os com benigna severidade.»
Vamos agora falar do dia da
banheira e para isso, começamos por uma passagem da obra citada de Ramalho
Ortigão, em que «…de madrugada, ao armar das barracas, quando ellas, accordadas
com os primeiros massaricos prateados que debicam a salsugem da maré, entôam em
côro de sopranos uma das muitas barcarolas locaes, uma aguda palpitação de
poesia festival e triumphadora preenche o ar…»
O meio de transporte utilizado
pelos banhistas para se deslocarem das suas casas para a praia dos banhos foi
variado ao longo dos tempos, tendo sido primeiro utilizado o jumento, o
carroção, o americano e, mais próximo de nós, o eléctrico. Sob a primeira forma
de transporte fala-nos Alberto Pimentel, na obra supra citada, que «… os
jumentos eram um meio de locomoção muito usado ainda no Porto para a jornada da
Foz. Pessoas conhecidas umas das outras organizavam burricadas, que partiam de
madrugada e iam choutando à beira do rio por entre nuvens de pó. De vez em
quando, as senhoras cahiam dos burros, e toda a caravana parava à espera que se
removesse aquelle vulgar incidente. Depois continuavam a jornada até à praia
dos banhos onde os burros ficavam descançando enquanto as pessoas que elles
haviam transportado iam tomar banho. Estas caravanas que chegavam ou que
partiam, contribuíram para animar o espectáculo da praia dos banhos».
Segundo o jornal “O Progresso da
Foz”, de 29 de Setembro de 1907, «… cada comboio que despeja na praia uma
multidão de banhistas, que vae descendo até à beira-mar conversando
ruidosamente, n´uma alegria communicativa, como que anteposando a sensação
deleitosa d´um banho n´aquelle mar tão azul. Raparigas aos banhos, com leves
vestidos claros, riem e chalaceiam, n´uma grazinada jovial e infantil.».
Sobre esta paisagem, o jornal “O imparcial da Foz, de 18 de Setembro de 1904, revela que «…os banhistas vão chegando, ainda com caras somnolentas e pouco animadas, parece tiritando de frio, entram nos pequenos cubiculos de lona, e vagarosamente, vão fazendo a toilette com que se hão-de apresentar ao velho deus Neptuno».
O facto de os banhistas irem a
banho de madrugada deve-se, tal como diz o Sr Domingos Picão, sobrinho de
banheiras de S.João da Foz, a estes se tomarem em jejum. O período de tempo,
receitado pelo médico, para ir a banhos era geralmente, como refere em 1889,
Eduardo Sequeira, na sua obra já citada, «…de vinte e cinco a trinta dias… não
devendo o banhista tomar banho no próprio dia da chegada à praia, mas tão
somente dous ou tres dias depois».
Depois de preparada a toilette
para ir a banhos, e tal como descreve ”O Progresso da Foz”, de 29 de Setembro
de 1907, «…principiam a sahir banhistas das barracas. Os homens, com as pernas
e os braços à vela, uns enfezados e rachiticos tremendo de frio n´aquella deliciosa
e amena manhã de Setembro, outros de formas musculares, quasi athleticos. As
senhoras com toda a sua esthetica destruída pela deselegancia dos largos
vestidos pretos guarnecidos de fitas brancas, os pés occultos em sapato de
tecido fino, os cabellos setinosos domados por uma touca ornada de lacinhos.
Algumas chegam às barracas com umas formas tão roliças e desenvolvidas e — oh;
desilusão! — saem para o banho tão escoadas que dir-se-ia estarem as barracas
povoadas de carnívoros». Da mesma forma, o jornal ” O imparcial da Foz”, de 18
de Setembro de 1904, diz-nos que «…apparecem os primeiros grupos já promptos
para entrar nas selsas águas, banheiros de bilhas na mão despejam água nas
cabeças dos mais nervosos, que correspondem com carantonhas capazes de metter
medo ao próprio mar. Entram n´água os primeiros grupos, é signal dado para
principio da animação da praia, desde
então até quasi ao meio dia, succedem-se uns aos outros, de forma que na praia
d´Ourigo milhares de pessoas se banharam».
Artur Magalhães Basto, n´A Foz Há
70 anos, conta que «…mesmo em maré vaza, só os destemidos tomavam banho sem ir
agarrados à mão do banheiro. E em geral os banhos demoravam apenas alguns
minutos. Esperavam-se as ondas e contavam-se os mergulhos; um, dois, três!… e rua!
— Quer dizer, imediatamente para a barraca».
«… Coragem e ávante!», era o dito
utilizado pela banheira Rita, a quem tem medo do mar, num artigo no “Jornal do
Porto” em 10 de Agosto de 1863.
Ainda n´A Foz Há 70 anos, Artur
Magalhães Basto afirma conhecer «…uma
descrição da praia do Caneiro em 1873, em que surgem tipos que eu vi ainda há
20, 25, 30 anos e ainda hoje certamente aparecem. Este por exemplo : «o senhor
gordo, nédio, droguista talvez». Vai tomar banho, desce solenemente a rua das
barracas. Relanceia com gosto a vista pelos espectadores, todo cheio de si e da
sua beleza plástica. Sonoro e enérgico, como quem dá voz de sentido a um
batalhão, berra — Gamela! O banheiro traz-lhe uma gamela com água; o senhor
gordo inclina a cabeça para a frente, como se fosse oferecer ao cutelo da
guilhotina; e o banheiro despeja-lhe a água pela cabeça abaixo. Depois
endireitando-se, bufa e avança para o mar — mas pára de repente, mal a água lhe
chegou à boca do estômago».
Depois do banho tomado, “O Progresso da Foz” de 29 de Setembro de 1907, dá-nos uma impressão de como os «Banhistas saem do mar e regressam às barracas, todos muito apressados, cada prega do fato transformada em goteira, as roupas encharcadas a desenhar-lhes as formas com nitidez».
O mesmo jornal revela-nos o ambiente que se vive na praia, «sentados em pequenas cadeiras encostadas às barracas que se alinham em filas uniformes de cubos brancos, muitos banhistas conversam ou lêem os jornaes da manhã; uns esperando companheiros inseparáveis dos seus brinquedos aquáticos, outros, mais madrugadores, já refrescados pelo banho matinal, e outros que são levados à praia somente pelo prazer de admirar plásticas que se revelam mais ou menos perfeitas sob os fatos de banho, ou para trocar olhares cupidíneos com as suas Dulcinéas». Para além destes olhares cupidíneos, Alberto Pimentel, na sua obra atrás citada, diz-nos as banheiras serem «…agentes venaes de uma assídua correspondência amorosa que os Romeus e as Julietas trocavam entre si, graças à mediação interesseira das supracitadas banheiras».
O próprio Ramalho Ortigão confessou no “Álbum de Costumes Portugueses”, ter sido banheira Anna da Luz «… a alegria para o meu coração inquieto, e o contentamento para a minha alma resignada». O que é certo tal como, nos diz Alberto Pimentel, na sua obra já citada«…é que muitos casamentos vieram tramados da Foz, no fim da temporada de banhos, graças à intervenção opistolar das banheiras». É acrescenta, que no fim da temporada, «…ninguém tornava a pensar na Foz senão no estio, quando o médico aconselhava o uso de banhos do mar…».
Fontes:
RMMV [60 anos de......gratidão]
Ramalho Ortigão in Álbum de
Costumes Portugueses, 1888
Gravura de Manuel de Macedo in Álbum
de Costumes Portugueses
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