No “Álbum de Costumes
Portugueses”, de 1887, Júlio Cesar Machado e Fialho de Almeida descrevem três
figuras “O Preto Caiador”, “Preta do Mexilhão” e o “Preto de S. Jorge”, perante
estas figuras e conhecendo um pouco da história da escravatura em Portugal,
questionamo-nos sobre a influência destes africanos arrancados às suas nações na
nossa cultura popular.
Para entendermos se existem
eventuais influencias, é necessário conhecer um pouco da história da
escravatura, pois era essa a condição da maioria desses negros.
Desde as suas origens, Portugal
conhecia o regime da escravidão, não apenas devido à norma de transformar os
mouros vencidos na guerra em cativos ou servos, mas através de relações de
comércio com mercadores árabes ou mesmo pela ação de pirataria realizada
diretamente pelos seus navios na região do Mediterrâneo fronteira ao Norte de
África.
Havia desde meados do século XIV
postos de venda de cativos na Rua Nova de Lisboa, onde se comerciavam peças
trazidas inclusive de Sevilha - que em Castela funcionava como entreposto - e,
segundo um documento encontrado pelo pesquisador no Convento de Chelas, uma das
freiras desta casa lá comprara por 150 libras em 1368 a um mercador sevilhano
uma jovem moura de pele branca chamada Moreima.
Através das trocas comerciais os
portugueses entraram em contacto mais íntimo com negros africanos das regiões
denominadas pelos mouros de bailad-as-Sudan, o além-Sara para o sul, habitado
pelos negros islamizados do Sudão, e das áreas ocidentais vizinhas dos rios
Níger e Senegal, ao norte do Equador.
As primeiras remessas de negros
da Guiné para Portugal na segunda metade do século XV.
As consecutivas tentativas de
conquista resultam sempre no sequestro de numerosos “inimigos”, não fosse
talvez esse o verdadeiro propósito. Foram escravos idos das Ilhas Canárias que
proporcionaram um núcleo económico rentável na ilha da Madeira através da
extração de madeira e produção de açúcar de cana.
De notar que as bulas Dum
Diversus e Divino Amore Communiti, de 18 de Junho de 1452, que autorizavam o
direito de filhar pagãos e reduzi-los à escravidão, haviam sido concedidas pelo
papa Nicolau V em concordância com os argumentos dos portugueses que alegavam
despesas com as navegações, assegurando a exploração tranquila da mão-de-obra
escrava em esquemas de produção agrícola para exportação.
Uma das dificuldades de
determinação do número de escravos negros africanos que entraram em Portugal
desde o início do século XV é o facto ser empregado invariavelmente o termo
negro para designar, de forma genérica, todos os tipos raciais de pele morena
com quem se relacionavam.
Como resultado de um longo
processo de observação, o povo passou a denominar o tipo de negro de pele mais
escura com o nome da cor que por comparação lhe correspondia na linguagem
comum, ou seja, a preta. A partir de então, um negro cuja pele fosse tão escura
que lembrasse a cor preta começou a ser chamado homem preto e logo, por
economia, preto. O termo negro continuaria a constituir, oficialmente, o nome
genérico para a gente das mais variadas graduações de cor de pele, a partir do
amorenado ou pardo até os tons mais fechados, mas, para o povo em geral, o
negro mais caracteristicamente africano passaria a ser sempre o preto.
Ainda assim, estima-se que o
número de escravos em Portugal era bastante elevado.
Em 1551 a capital lusitana teria
cerca de 100.00 habitantes, dos quais 9.900 eram escravos, ou seja 9,9% da
população. Ao longo dos sec. XVI e XVII a mão-de-obra escrava representava já
10% da população total do Algarve e Alentejo e também era visível no Norte de
Portugal e em outras regiões.
O motivo da substituição do
jornaleiro livre pelos escravos, não poderia ser a falta de gente em Portugal
mas sim, o regime da grande propriedade, do latifúndio, que imperava no
Alentejo e se arrastaria por centenas de anos.
A utilização incessante dessa
mão-de-obra, de meados do século XV até à segunda metade do século XVII,
fixou-se e estabilizou-se em certas áreas do mundo agrícola, declinando, porém,
no século XVIII, em virtude da gradual redução no ritmo da substituição desse
tipo específico de trabalho. Mas, mesmo em declínio, não cessou de existir,
alimentada pela circunstância cruel de o filho de escravos herdar a condição
dos pais, e, assim, quando em 1761 o Alvará de 19 de Setembro, providenciado
pelo marquês de Pombal, determina o fim da entrada de escravos em Portugal,
apenas nas províncias a sul do Tejo ainda trabalham nos campos 4.000 a 5.000
escravos.
O próprio texto do Alvará de
Libertação demonstra que foram as razões de ordem econômica responsáveis pela
extinção do trabalho escravo na agricultura portuguesa: com a exploração do
ouro brasileiro das Minas Gerais a exigir cada vez maior número de escravos, o
desvio desse tipo de mão-de-obra para território português constituía um
desfalque na conquista da riqueza mais rápida, pela via colonial.
O poder real foi obrigado a reiterar o Alvará de 12 anos depois, porque muitos proprietários de escravos, não desejando perder o capital aplicado na compra das suas máquinas de produzir trabalho, continuavam a explorá-las clandestinamente.
Preta do Mexilhão |
De facto os escravos foram usados
pelos portugueses como fornecedores de força de trabalho em empresas
agro-industriais (caso da fabricação de açúcar nas ilhas atlânticas); como
trabalhadores em obras públicas (desbravamento de matas, aterro de pântanos e
construção de prédios); em serviços de bordo em navios; trabalhos portuários de
carga e descarga; como remadores de galés e barcos de transporte; vendedores de
água (negras do pote) e de peixe; como vendedores ambulantes de carvão; em
serviços públicos municipais (remoção dos dejetos domiciliares pelas chamadas
negras de canastras); como artesãos (mesteirais); como negros de ganho nas ruas
(ao serviço de senhores particulares); como trabalhadores em lagares de azeite
(onde chegavam a mestres); e, ainda, «na cultivação do campo e no serviço
ordinário», tal como informaria em 1655 o padre Manuel Severim de Faria nas
suas Notícias de Portugal, admirado com o número de escravos empregados na
«cultivação da terra» e nos serviços domésticos (atividade em que realmente
predominavam e serviam em maior número nas cidades, principalmente em Lisboa).
O Preto Caiador |
A partir do século XVI, surgiram
em Lisboa e noutras cidades e vilas da província, principalmente no Alentejo,
confrarias de negros africanos com propósitos religiosos dedicadas a São Jorge
ou Nª Srª do Rosário, disfarçando em aparente conversão os seus cultos
africanos.
O convento de São Domingos, dos
dominicanos, em Lisboa, era frequentado por uma confraria de negros: -
Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa. Dessa forma
conseguiam preservar-se de acusações de heresia, a constituição de fundos
destinados a compra de alforria e a participação na vida social paralelas às
dos brancos, em vários aspetos da atividade comunitária.
Em “Álbum de Costumes
Portugueses”, Fialho de Almeida descreve o “Preto de S. Jorge”, como membro de
uma confraria que teria direito a incorporar a procissão do CORPUS CHRISTI, com
os demais ofícios.
Descreve ainda a honra que estes
homens tinham na sua pertença à confraria, sendo a cor da pele o principal
ditame, teria de ser do mais retinto ébano e quando uma degenerada geração saia
mulata engraxava-se a pele.
Como já foi referido
anteriormente, esta mão-de-obra escrava foi muito utilizada na agricultura
sobretudo a sul do Tejo.
Remanescências dessa presença
foram relatados por José Leite de Vasconcelos em Etnografia Portuguesa, Livro
II.Preto de S.Jorge |
«Ultimamente tive ocasião de ver
alguns exemplares dos mesmos Mulatos (...).
Eles próprios dizem que são atravessadiços, isto é,
"mestiços", em sentido geral. A cor varia: há indivíduos que são, por
assim dizer, pálidos ou morenos, e outros muito foscos, quase pretos (...). Os
vizinhos chamavam dantes a esta gente Pretos do Sado ou Pretos de São Romão,
porque havia lá realmente muitos pretos. "São Romão era uma ilha de Pretos",
ouvi referir a vários mulatos; ou "algum tempo havia lá muito preto
encarapinhado". Ainda hoje se usa Preto como alcunha ou apelido:
"Fulano Preto, Fulana José Preta"! Pouco a pouco a raça vai-se
diluindo no grosso da população circunvizinha (...). Pena é que não se
descobrisse ainda algum documento que nos esclarecesse acerca da data em que na
Ribeira do Sado se fixou a raça africana ("raça negra") cujos
descendentes estão diante de nós.»
De facto, nas povoações das
margens do rio Sado é fácil identificar traços negroides nalguns moradores:
cabelo encarapinhado, pele morena, lábios grossos, nariz largo …
De facto, em Alcácer do Sal, nas
povoações de São Romão de Sádão e Rio de Moinhos, é bem conhecida a existência dos "Pretos
de S. Romão" que, fruto da miscigenação, se misturaram com a população
branca e foram gradualmente perdendo as suas características africanas. Tal como
se perdeu a memória da razão da sua fixação desta população.
Julga-se que seria um colonato de
escravos, ai estabelecido por serem supostamente imunes ao paludismo,
localmente conhecido por febre terçã ou sezões, um mal endémico, pois a região,
durante séculos um território desabitado, tinha a fama de insalubridade e era
rodeada de charnecas e gândaras.
De qualquer modo, volvidos muitos
séculos, a memória popular, sempre curta para guardar factos históricos, apenas
fez perdurar a lenda da "Ilha de Pretos" e as cantigas que ainda hoje
ecoam ao ritmo do Ladrão:
Quem quezer ver moças
Da cor do
cravão,
Vá dar um passeio
Até S. Romão.
Não tenha receio,
Até São Romão
Vá dar um passeio.
À Rebêra do Sado
Vi lá uma preta
De beco virado.
Responda-me à letra
De beco virado
Vi lá uma preta.
Cá da Carvalheira
É o pai dos pretos
De toda a Ribeira.
Quem lho diz sou eu:
Se ele é pai dos Pretos
Também o é seu.
Esta presença negro-africana também se verifica nos topónimos de
muitas ruas, como por exemplo: Rua das Pretas, Rua do Poço dos Negros … ou no
nome de muitas povoações como no concelho de Vinhais existe a freguesia de
S.Bartolomeu de Negredo, no de Barcelos a de Santa Eulália de Negreiros e o
lugar chamado do Preto e no de Santo Tirso encontram-se S. Mamede de Negrelos,
S.Tomé de Negrelos, Santa Maria de Negrelos. Vale de Negros é o nome de um
povoado do concelho de Ancião, Pero Negro o de um outro no concelho de Arruda
dos Vinhos. Nos concelhos de Montalegre e de Óbidos temos, respetivamente, as
freguesias de Santa Maria Madalena de Negrões e como já dissemos, a de Negros
ou A dos Negros.
No concelho de Loulé há o lugar chamado Cerro dos Negros, no de
Almeirim há uma povoação com o nome Paços de Cima ou dos Negros. Dois povoados
dos concelhos de Albufeira e de Silves chamam-se Guiné, no concelho de Alvito
existe a povoação chamada Horta de Guiné. A dos Pretos, Monte dos Pretos e
Quinta da Preta são os nomes de povoações dos concelhos de Leiria, Estremoz e
Alcobaça, …, enfim, demonstra-se assim a importância que estas populações teriam
em determinadas regiões para que servissem de referência a um determinado
lugar.
Uma outra influência é
na origem do fado, que parece despontar da imensa popularidade nos séculos
XVIII e XIX da Modinha, e da sua síntese popular com outros géneros afins, como
o Lundu, um género musical proveniente de angola.
Não conseguindo
estabelecer maiores pontos de contacto entre a cultura africana e a portuguesa
que subsistam e sejam detetado na nossa etnografia, fica aqui o nosso
contributo para algo que nos parece importante, a presença dos Negros na nossa
cultura. Certos ficamos de que nas nossas veias, circula um caldo de culturas e
de povos, no qual certamente se encontra o africano.
Bibliografia:
2 comentários:
Interessantíssimo! Uma delícia.
Wow, muito interessante !Nao sabia que tinhamos escravos em Portugal, nas colonias sim .
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