Quando em 1717 se iniciou a
construção do Convento de Mafra, não se imaginava o impacto social e cultural
que o mesmo viria a produzir mormente na região. Inicialmente pensado para ser
erguido nos terrenos pertencentes aos marqueses de Ponte de Lima, então
donatários da vila de Mafra, com vista a alojar uma dezena de frades da Ordem
de S. Francisco da Província da Arrábida, o rei D. João V viria em 1712 a
determinar a sua construção no sítio então chamado “Alto da Vela”, alegadamente
em cumprimento de uma promessa. Com o decorrer do tempo, a imponência do
monumento levou a uma certa secundarização da área histórica de Mafra ao ponto
da maioria dos visitantes daquela vila desconhecerem a vetusta Igreja de Santo
André a denunciar a arquitectura de uma velha mesquita ou ainda o Palácio dos
Marqueses de Ponte de Lima, actualmente em ruínas e erguido sobre as antigas
muralhas da povoação.
Os trabalhos de construção do
Convento de Mafra empregaram então 52 mil trabalhadores, um número claramente
superior à população que então residia naquela região. Eram operários oriundos
um pouco de todo a parte, com hábitos e costumes diferenciados entre si e da
população local. Para além daquela imensa massa humana que durante década e
meia ali trabalhou arduamente, há ainda a registar aqueles que de alguma forma
estiveram envolvidos naqueles trabalhos, ainda que indirectamente, assegurando
nomeadamente o abastecimento de víveres e outros bens de que necessitavam, bem
como a sua confecção e alojamento.
Feita uma descrição bastante
sumária do esforço humano que um projecto de tal envergadura implicou para a
época, fácil será de imaginar o efeito cultural produzido e o impacto social
que obteve na vida local. Nos momentos de ócio que decerto também os haveria,
nas festas religiosas e romarias que tinham lugar nas aldeias em redor,
certamente se misturaram diferentes formas de dançar, cruzaram-se os cantares e
confundiram-se diversas formas de trajar. Afinal de contas, a música e os
bailaricos no terreiro eram então as únicas formas de divertimento das gentes
simples do povo e, naturalmente, os operários que vieram para Mafra trouxeram
consigo instrumentos musicais, da mesma forma que alguns séculos antes se
levaram guitarras para o campo de batalha em Alcácer Quibir.
Uma vez terminadas as obras de
construção do convento, decerto nem todos regressaram às suas origens. Durante
o tempo que permaneceram em Mafra, muitos houve certamente que se enamoraram
das moças da região, constituíram família e resolveram fixar-se, amanhando as
terras que até então eram apenas cultivadas pelos saloios. Daí resulta uma
certa influência no folclore local, nos instrumentos que utilizam, nas danças e
cantares que lhes são características. Não admira, pois, que encontremos por
aqui a gaita-de-foles ou nos surpreendam com uma desfolhada na eira ou ainda a
execução de um “vira” ou uma “caninha verde”. Já a “Contradança” que também
aqui possui a sua expressão terá naturalmente a ver com a presença dos
invasores franceses na localidade. Também a tradição oral expressa através de
provérbios, contos e inúmeras cantigas reflecte a influência transmitida pelas
gentes provenientes de outras regiões do país.
Em consequência, ainda que
conserve muitas dos seus traços originais, a caracterização do camponês da
região de Mafra não corresponde integralmente ao perfil do saloio enquanto
descendente dos berberes que outrora se fixaram no termo de Lisboa e estavam
obrigados a pagar ao rei cristão o tributo que antes entregavam aos reis mouros
e a que designavam por “çalaio”, supondo-se que daí tenha derivado o termo pelo
qual passaram a ser identificados. Ainda assim, grande parte possui um traço
fisionómico muito próximo do tipo árabe, de tez morena, cabelo escuro e íris
ocular acinzentada, características aliás que podemos encontrar entre as gentes
de outras regiões do país que receberam idênticas influências ao longo da
História.
Em jeito de conclusão, ensina-nos
a História que nela devemos encontrar a explicação para os fenómenos do
presente, para além da compreensão do futuro. E, de igual forma, também o
estudo do nosso folclore deve obedecer a idêntico entendimento uma vez que não
constitui uma realidade estática, antes evolui e se transforma com o decurso do
tempo.
Aldeão dos arredores de Mafra segundo uma gravura francesa
do início do século XIX ou seja, o período das invasões francesas. De Henry
L’Evêque, “Costume of Portugal”, 1814.
(Foto: Arquivo Fotográfico da C.M.L.)
Aldeão dos arredores de Mafra. Esta gravura tem a mesma
origem da anterior.
(Foto: Arquivo Fotográfico da C.M.L.)