A Vendeira de Fructa no Porto, do Album de Costumes Portuguezes, edição das Livrarias Aillaud e Bertrand(Paris/Lisboa) com texto de Xavier da Cunha na ortografia original.
VENDEDEIRA DE FRUTA NO PORTO
Agrada-lhe? também a mim. Prova de que, o leitor e eu, temos ambos bom-gôsto! Nem realmente fora acceitavel voto o de quem não sympathizasse com aquelle typo deveras esbelto da vendeira portuense que, a offerecer-nos fructas saborosas e aromáticas, faz quiçá lembrar a graciosidade tentadora com que no paraíso bíblico a lendária Eva presentava ao seu rendido companheiro sumarentos pomos.
Leitor que nunca da capital tenha alongado os passos, e que só por exemplares lisbonenses conheça a fructeira ambulante, mal imagina o que é no Porto a sua congénere! Mal imagina, porque, se ha bruteza que desconsole, é a da mulher-de-giga (collareja ou gallega) que pelas ruas de Lisboa nos vende hortaliça e fructa. O pregão da vendeira lisboeta poderá ser mais musical; poderá. Esta musicalidade, característica dos pregões olisyponenses, parece que vem já de longe. Quem ha que não tenha ouvido falar na celebre «Luizinha das camoezas», immortalizada em toantes por galanteador poeta do século XVII?
Figurinhas galantes como esta, não se encontram já hoje por Lisboa: quebrou-se-lhes o molde, creio eu; ficou tão somente a melodia tradicional dos pregões a espriguiçar se em mil requebros de incomparáveis fioriture.
No Porto, não: como fez notar o sagaz critério do nosso Castilho em um dos capítulos da sua Lisboa antiga, no Porto os pregões «são sêccos, áridos, apressados.» É que estamos na terra do trabalho, onde não ha tempo a perder. A vendeira de fructas, por muito garrida que seja, não pode furtar-se á noção d'este fundamental principio de economia industrial. Ha n'ella o sangue phenicio a denunciar-se por uma irrequieta laboriosidade.
De Avintes, Valladares, e outros circumvizinhos logarejos na margem sul do Douro, eil-a todas as manhans em mercado errante pelas ruas da «cidade invicta.»
Pousa-lhe a canastra em sogra formada por um rolo de ourelos ou coisa parecida; abaixo da sogra, o chapéo de feltro escuro, em guisa de sombrero andaluz, com borlas de retroz, e larga faixa de veludilho a debruar-lhe a aba levantada; entre o chapéo e a cabeça, um lencito, cujas pontas se bamboleiam posteriormente incobrindo-Ihe o arrematar das tranças; segue-se o collete de ganga, ou de cotim, de lan ou de veludo, ás vezes ricamente bordado; nos braços alvejam-lhe nítidas, arregaçadas e fartas, as mangas da camisa; ao collete sobrepõe-se, dobrado em diagonal, um vistoso lenço de chita ou de seda, tarjado por phantasticos florões de ramagem vermelha ou côr-de-laranja; e por sobre o lenço pendentes do collo, os grossos grilhões a sustentarem corações filigranados, de envolta com crucifixos e devotas imagens, tudo de oiro fino, oiro de lei, em harmonia com as enormes arrecadas que lhe derrubam quasi as pequeninas orelhas; depois a saia de estamenha, ou de zuarte, — ou de linhas polychromicas, artisticamente combinada a harmonia do colorido,— saia de toda a roda, em pregas unidas e sobrepostas, que lhe representa a peça mais notável do vestuário; na deanteira o avental de barra; e a conchegar-lhe a saia, para facilitar a locomoção, em vez do cinto que usam as ovarinas, a vendeira portuense adopta ordinariamente um simples lenço enrolado; desce-lhe a fímbria da saia té perto do tornozelo, o que não obsta a que se lhe destaquem branquíssimas como neve as meias de linho no pé calçado em soletas (umas pantufas de couro ou de polimento, de lan, de seda mesmo ou de veludo, com bordaduras ás vezes, entrada sempre larga, salto baixíssimo, quasi invisível, e borla espherica de typo mourisco a ultimar-lhe a ornamentação).
Agrada-lhe, ao leitor? Também a mim; também a mim. Prova incontestável, repito, de que nem o leitor, nem eu, perdemos ainda o bom-gôsto.
Xavier da Cunha
Fonte: Agostinho Barbosa Pereira in Coisas que se escrevem
Agrada-lhe? também a mim. Prova de que, o leitor e eu, temos ambos bom-gôsto! Nem realmente fora acceitavel voto o de quem não sympathizasse com aquelle typo deveras esbelto da vendeira portuense que, a offerecer-nos fructas saborosas e aromáticas, faz quiçá lembrar a graciosidade tentadora com que no paraíso bíblico a lendária Eva presentava ao seu rendido companheiro sumarentos pomos.
Leitor que nunca da capital tenha alongado os passos, e que só por exemplares lisbonenses conheça a fructeira ambulante, mal imagina o que é no Porto a sua congénere! Mal imagina, porque, se ha bruteza que desconsole, é a da mulher-de-giga (collareja ou gallega) que pelas ruas de Lisboa nos vende hortaliça e fructa. O pregão da vendeira lisboeta poderá ser mais musical; poderá. Esta musicalidade, característica dos pregões olisyponenses, parece que vem já de longe. Quem ha que não tenha ouvido falar na celebre «Luizinha das camoezas», immortalizada em toantes por galanteador poeta do século XVII?
Figurinhas galantes como esta, não se encontram já hoje por Lisboa: quebrou-se-lhes o molde, creio eu; ficou tão somente a melodia tradicional dos pregões a espriguiçar se em mil requebros de incomparáveis fioriture.
No Porto, não: como fez notar o sagaz critério do nosso Castilho em um dos capítulos da sua Lisboa antiga, no Porto os pregões «são sêccos, áridos, apressados.» É que estamos na terra do trabalho, onde não ha tempo a perder. A vendeira de fructas, por muito garrida que seja, não pode furtar-se á noção d'este fundamental principio de economia industrial. Ha n'ella o sangue phenicio a denunciar-se por uma irrequieta laboriosidade.
De Avintes, Valladares, e outros circumvizinhos logarejos na margem sul do Douro, eil-a todas as manhans em mercado errante pelas ruas da «cidade invicta.»
Pousa-lhe a canastra em sogra formada por um rolo de ourelos ou coisa parecida; abaixo da sogra, o chapéo de feltro escuro, em guisa de sombrero andaluz, com borlas de retroz, e larga faixa de veludilho a debruar-lhe a aba levantada; entre o chapéo e a cabeça, um lencito, cujas pontas se bamboleiam posteriormente incobrindo-Ihe o arrematar das tranças; segue-se o collete de ganga, ou de cotim, de lan ou de veludo, ás vezes ricamente bordado; nos braços alvejam-lhe nítidas, arregaçadas e fartas, as mangas da camisa; ao collete sobrepõe-se, dobrado em diagonal, um vistoso lenço de chita ou de seda, tarjado por phantasticos florões de ramagem vermelha ou côr-de-laranja; e por sobre o lenço pendentes do collo, os grossos grilhões a sustentarem corações filigranados, de envolta com crucifixos e devotas imagens, tudo de oiro fino, oiro de lei, em harmonia com as enormes arrecadas que lhe derrubam quasi as pequeninas orelhas; depois a saia de estamenha, ou de zuarte, — ou de linhas polychromicas, artisticamente combinada a harmonia do colorido,— saia de toda a roda, em pregas unidas e sobrepostas, que lhe representa a peça mais notável do vestuário; na deanteira o avental de barra; e a conchegar-lhe a saia, para facilitar a locomoção, em vez do cinto que usam as ovarinas, a vendeira portuense adopta ordinariamente um simples lenço enrolado; desce-lhe a fímbria da saia té perto do tornozelo, o que não obsta a que se lhe destaquem branquíssimas como neve as meias de linho no pé calçado em soletas (umas pantufas de couro ou de polimento, de lan, de seda mesmo ou de veludo, com bordaduras ás vezes, entrada sempre larga, salto baixíssimo, quasi invisível, e borla espherica de typo mourisco a ultimar-lhe a ornamentação).
Agrada-lhe, ao leitor? Também a mim; também a mim. Prova incontestável, repito, de que nem o leitor, nem eu, perdemos ainda o bom-gôsto.
Xavier da Cunha
Fonte: Agostinho Barbosa Pereira in Coisas que se escrevem
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