Trajar é um acto que reflecte a quase infindável trama de relações que o indivíduo e sociedade mutuamente estabelecem.
Deste acto seleccionamos apenas alguns aspectos sobre os quais, embora em jeito de «flash» teceremos algumas considerações.
Sobre motivações que levaram o homem da nudez ao trajar, muito se tem aventado. Já em 1930, Flugel, na obra The Psychology of Clothers, resumia as razões que os estudiosos deste assunto até aí apresentavam:
- A necessidade de proteger o corpo contra as agressões do exterior;
- A modéstia, ou pudor, marca do pecado original;
- A necessidade de adornar ou decorar o corpo, mostrando-o aos outros.
A maioria dos autores, como, de resto, ele próprio, entendiam que a principal finalidade do vestuário era a satisfação da necessidade de ornamentar o corpo que o usava.
Ao estudarem a sociedades «primitivas», os antropólogos puderam observar que, apesar da ausência de roupagens, os corpos ostentavam uma variedade enorme de sinais decorativos desde a pintura, tatuagens, escarificações ou objectos, com uma função social evidente e equiparável à do trajar nas nossas sociedades.
Comunicar com os outros, não só as opções e desejos individuais, mesmo os mais profundos e irracionais, mas também o papel que se desempenha na sociedade em que se vive.
Como afirmou Umberto Eco glosando o ditado popular, «O hábito fala pelo monge».
Fala o indivíduo, da sociedade, dos valores culturais que a reagem, do tempo e do espaço.
Expressa simultaneamente um querer ser diferente através de marcas distintivas individuais e uma uniformização determinada pelas normas sociais que não perdoam a quem delas se desvia.
O traje é uma das manifestações materiais que melhor servirá o indicador a quem quiser distinguir o meio urbano e o meio rural. Com efeito, tanto o traje rural como o traje urbano possuem marcas próprias, reveladoras de diferentes formas de ver o mundo e estão subordinados a sistemas de valores hierarquizados de modo diverso.
E se eventualmente podemos observar que por razões várias, se criam no mundo rural mecanismos internos que favorecem a rápida adopção de padrões de vestuário de influência urbana, e em constante mutação, o mesmo não acontecia na época representativa nesta exposição. A sociedade rural de então, mais fechada às influências urbanas, usava o mesmo vestuário que as gerações anteriores, sendo as alterações lentas, e incidindo mais no pormenor decorativo de gosto individual e nos materiais de confecção, do que propriamente no estilo formal, sendo este, ditado e sustentado pela rigidez de parâmetros rurais e costumeiros.
Citamos o sociólogo Henri Merendas: «cada um veste o mesmo tipo de roupa que todos os demais desde gerações atrás, mas cada roupa é diferente: as mulheres não poupam trabalho para acrescentar um bordado ou uma renda de maneira a diferenciar-se e poder ser mais bela».
Esta necessidade de diferenciação chegava mesmo ao extremo de utilizar como marca decorativa individual, o próprio nome. Os homens exibiam-no no peito da camisa de linho e as mulheres ostentavam as suas iniciais no avental ou nas costas do colete.
Porém, não é apenas uma diferenciação de cunho pessoalista que se manifesta no vestuário: há também um conjunto de características que evidenciam os papéis que os seus possuidores desempenhavam na sociedade rural, nomeadamente no tocante à posse de bens. Havia diferenças no traje de um jornaleiro e no de um lavrador abastado; mais ligeiras no traje de trabalho, mais vincadas no traje que se levava às festas, distinguiam-se não só pelo quantitativo das peças arrecadadas nas «caixas de limpeza», mas também pela qualidade e consequente custo de materiais de confecção e adorno.
Como sabiamente afirmava a senhora «Felisbina», antiga costureira, «o traje é como a pessoa, a qualidade não é toda uma».
Ao nível da representação, na mente popular figurava que «luxar não era para os pobrinhos». Vestir bem, ricamente, era sinal de «teres» prestigiantes.
Efectivamente, chegaram até nós alguns trajes de cerimónia que revelam bem a capacidade económica daquelas para quem foram feitos.
O traje de cerimónia era concebido para ocasiões de grandes festividades familiares ou colectivas.
Quer se destinasse para o casamento dos filhos, quer para vestir o «juiz» ou «mordomo», depositário de confiança da comunidade e seu representante nas festas colectivas, era o prestígio de uma «casa», que se punha à prova dos olhares avaliadores de povoação. O prestígio alcançado por essa família ultrapassava-a e tornava-a extensivo a toda a comunidade. Era um factor de coesão.
Nestas circunstâncias, ao contrário do habitual, a opinião pública exige que se gaste, que «arda a casa» nem que seja à custa da penhora ou da venda do património familiar. O traje, símbolo visual destes valores, feito para durar num «tempo longo», fruto de tamanho investimento afectivo e económico, passava também a ser património. Havia de acompanhar o indivíduo pela vida fora, cuidadosamente guardado e dobrado do avesso. Saindo da «caixa», noutras festas ou em momentos solenes como aquele que escolhemos para esta exposição: a vinda à cidade para tirar o retrato que se enviava aos familiares quando a ausência era já longa. Sempre que se usasse, despertaria memórias, mas a principal referência, seria a do momento para que fora concebido…
Uns eram enterrados vestindo os seus proprietários, outros eram repartidos pelos que ficavam.
O traje de trabalho também designado por traje de cotio ou traje da semana, vestia-se como o próprio nome indica, durante a semana, para trabalhar. Com características próprias, de acordo com a função a que se destinava, havia de reflectir a imagem que a comunidade tinha acerca do trabalho e as relações sociais construídas segundo esse modelo.
O apreço pelo acto de trabalhar é uma constante própria da sociedade rural, apesar da exigência de árduo e permanente esforço físico. Embora, como notou Lidón Tolosana, o trabalho não seja considerado como um objecto em si mesmo, isto é, um ideal de vida, mas um meio para alcançar riquezas que permitirão, viver sem trabalhar, a verdade é que «ser trabalhador» é uma qualidade moral exigida a qualquer um. Ao ponto de estar sempre presente como referente simbólico para um «bom partido de casamento». A imagem da moça casadoira era a daquela que, além de «teres», havia de «comer no avental», isto é, possuir no quotidiano, hábitos de vida que a não diferenciassem muito da jornaleira ou da serviçal.
O trabalho unia abastados e jornaleiros numa cadeia de interdependência criadora de intimidades e laços de solidariedade geradoras duma quase uniformização do trajar.
O traje de trabalho oculta diferenças sociais.
O traje de lazer, de cerimónia, acentua-as.
Se na festa se admite o dispêndio, como atrás, referiu, fora dela, é um acto condenável pela opinião pública. Murmura-se, sancionando o acto de esbanjar. E é esbanjamento o gasto de economias em roupagens para vestir aqueles que se ocupavam, segundo a expressão popular, em «trabalho sujo».
Usavam-se nessa época, para a confecção de trajes de trabalho, materiais produzidos pelo próprio grupo doméstico, ou tecidos de algodão, de baixo preço, como os cotins, as chitas e os riscados, que se estreavam ao domingo ou numa ida à feira, passavam a «semaneiros» depois de usados, acabando em cueiros para os filhos ou agasalho para os pobres.
Raríssimos trajes escaparam a tão intenso e desgastante percurso.
Felizmente, restaram fotografias que pesquisamos e seleccionamos (…) e do seu contributo para o estudo do traje desta região falam elas próprias.
Autores: Lídia Máximo Esteves e Angélica Cruz Barreto
Fonte: Portal do Folclore Português
Deste acto seleccionamos apenas alguns aspectos sobre os quais, embora em jeito de «flash» teceremos algumas considerações.
Sobre motivações que levaram o homem da nudez ao trajar, muito se tem aventado. Já em 1930, Flugel, na obra The Psychology of Clothers, resumia as razões que os estudiosos deste assunto até aí apresentavam:
- A necessidade de proteger o corpo contra as agressões do exterior;
- A modéstia, ou pudor, marca do pecado original;
- A necessidade de adornar ou decorar o corpo, mostrando-o aos outros.
A maioria dos autores, como, de resto, ele próprio, entendiam que a principal finalidade do vestuário era a satisfação da necessidade de ornamentar o corpo que o usava.
Ao estudarem a sociedades «primitivas», os antropólogos puderam observar que, apesar da ausência de roupagens, os corpos ostentavam uma variedade enorme de sinais decorativos desde a pintura, tatuagens, escarificações ou objectos, com uma função social evidente e equiparável à do trajar nas nossas sociedades.
Comunicar com os outros, não só as opções e desejos individuais, mesmo os mais profundos e irracionais, mas também o papel que se desempenha na sociedade em que se vive.
Como afirmou Umberto Eco glosando o ditado popular, «O hábito fala pelo monge».
Fala o indivíduo, da sociedade, dos valores culturais que a reagem, do tempo e do espaço.
Expressa simultaneamente um querer ser diferente através de marcas distintivas individuais e uma uniformização determinada pelas normas sociais que não perdoam a quem delas se desvia.
O traje é uma das manifestações materiais que melhor servirá o indicador a quem quiser distinguir o meio urbano e o meio rural. Com efeito, tanto o traje rural como o traje urbano possuem marcas próprias, reveladoras de diferentes formas de ver o mundo e estão subordinados a sistemas de valores hierarquizados de modo diverso.
E se eventualmente podemos observar que por razões várias, se criam no mundo rural mecanismos internos que favorecem a rápida adopção de padrões de vestuário de influência urbana, e em constante mutação, o mesmo não acontecia na época representativa nesta exposição. A sociedade rural de então, mais fechada às influências urbanas, usava o mesmo vestuário que as gerações anteriores, sendo as alterações lentas, e incidindo mais no pormenor decorativo de gosto individual e nos materiais de confecção, do que propriamente no estilo formal, sendo este, ditado e sustentado pela rigidez de parâmetros rurais e costumeiros.
Citamos o sociólogo Henri Merendas: «cada um veste o mesmo tipo de roupa que todos os demais desde gerações atrás, mas cada roupa é diferente: as mulheres não poupam trabalho para acrescentar um bordado ou uma renda de maneira a diferenciar-se e poder ser mais bela».
Esta necessidade de diferenciação chegava mesmo ao extremo de utilizar como marca decorativa individual, o próprio nome. Os homens exibiam-no no peito da camisa de linho e as mulheres ostentavam as suas iniciais no avental ou nas costas do colete.
Porém, não é apenas uma diferenciação de cunho pessoalista que se manifesta no vestuário: há também um conjunto de características que evidenciam os papéis que os seus possuidores desempenhavam na sociedade rural, nomeadamente no tocante à posse de bens. Havia diferenças no traje de um jornaleiro e no de um lavrador abastado; mais ligeiras no traje de trabalho, mais vincadas no traje que se levava às festas, distinguiam-se não só pelo quantitativo das peças arrecadadas nas «caixas de limpeza», mas também pela qualidade e consequente custo de materiais de confecção e adorno.
Como sabiamente afirmava a senhora «Felisbina», antiga costureira, «o traje é como a pessoa, a qualidade não é toda uma».
Ao nível da representação, na mente popular figurava que «luxar não era para os pobrinhos». Vestir bem, ricamente, era sinal de «teres» prestigiantes.
Efectivamente, chegaram até nós alguns trajes de cerimónia que revelam bem a capacidade económica daquelas para quem foram feitos.
O traje de cerimónia era concebido para ocasiões de grandes festividades familiares ou colectivas.
Quer se destinasse para o casamento dos filhos, quer para vestir o «juiz» ou «mordomo», depositário de confiança da comunidade e seu representante nas festas colectivas, era o prestígio de uma «casa», que se punha à prova dos olhares avaliadores de povoação. O prestígio alcançado por essa família ultrapassava-a e tornava-a extensivo a toda a comunidade. Era um factor de coesão.
Nestas circunstâncias, ao contrário do habitual, a opinião pública exige que se gaste, que «arda a casa» nem que seja à custa da penhora ou da venda do património familiar. O traje, símbolo visual destes valores, feito para durar num «tempo longo», fruto de tamanho investimento afectivo e económico, passava também a ser património. Havia de acompanhar o indivíduo pela vida fora, cuidadosamente guardado e dobrado do avesso. Saindo da «caixa», noutras festas ou em momentos solenes como aquele que escolhemos para esta exposição: a vinda à cidade para tirar o retrato que se enviava aos familiares quando a ausência era já longa. Sempre que se usasse, despertaria memórias, mas a principal referência, seria a do momento para que fora concebido…
Uns eram enterrados vestindo os seus proprietários, outros eram repartidos pelos que ficavam.
O traje de trabalho também designado por traje de cotio ou traje da semana, vestia-se como o próprio nome indica, durante a semana, para trabalhar. Com características próprias, de acordo com a função a que se destinava, havia de reflectir a imagem que a comunidade tinha acerca do trabalho e as relações sociais construídas segundo esse modelo.
O apreço pelo acto de trabalhar é uma constante própria da sociedade rural, apesar da exigência de árduo e permanente esforço físico. Embora, como notou Lidón Tolosana, o trabalho não seja considerado como um objecto em si mesmo, isto é, um ideal de vida, mas um meio para alcançar riquezas que permitirão, viver sem trabalhar, a verdade é que «ser trabalhador» é uma qualidade moral exigida a qualquer um. Ao ponto de estar sempre presente como referente simbólico para um «bom partido de casamento». A imagem da moça casadoira era a daquela que, além de «teres», havia de «comer no avental», isto é, possuir no quotidiano, hábitos de vida que a não diferenciassem muito da jornaleira ou da serviçal.
O trabalho unia abastados e jornaleiros numa cadeia de interdependência criadora de intimidades e laços de solidariedade geradoras duma quase uniformização do trajar.
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O traje de lazer, de cerimónia, acentua-as.
Se na festa se admite o dispêndio, como atrás, referiu, fora dela, é um acto condenável pela opinião pública. Murmura-se, sancionando o acto de esbanjar. E é esbanjamento o gasto de economias em roupagens para vestir aqueles que se ocupavam, segundo a expressão popular, em «trabalho sujo».
Usavam-se nessa época, para a confecção de trajes de trabalho, materiais produzidos pelo próprio grupo doméstico, ou tecidos de algodão, de baixo preço, como os cotins, as chitas e os riscados, que se estreavam ao domingo ou numa ida à feira, passavam a «semaneiros» depois de usados, acabando em cueiros para os filhos ou agasalho para os pobres.
Raríssimos trajes escaparam a tão intenso e desgastante percurso.
Felizmente, restaram fotografias que pesquisamos e seleccionamos (…) e do seu contributo para o estudo do traje desta região falam elas próprias.
Autores: Lídia Máximo Esteves e Angélica Cruz Barreto
Fonte: Portal do Folclore Português
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