segunda-feira, outubro 28, 2013

Pé descalço


Por Eng. Manuel Farias

Por vezes assistimos a grandes discussões sobre a autenticidade do calçado no folclore português: se as botas podem ter rasto de borracha, se as chinelas podem ter bordados e lantejoulas, se os tamancos são com biqueira levantada, se o couro é preto ou castanho natural, etc. E que tal ir um pouco mais além e questionar: dentro do mesmo grupo de folclore quem deverá andar calçado e quem deverá andar descalço?
Vamos descalçar esta bota.

Os últimos reis da dinastia de Bragança tomaram medidas para modernizar os usos lisboetas, nomeadamente através da proibição de entrar em Lisboa com pé descalço. Os reis Luis e Carlos promulgaram decretos sobre esta matéria e deu em nada, numa altura em que os portugueses tinham o uso arreigado de andar descalços, por penúria ou tradição; mesmo nas estações mais frias, esta prática era observada pela vasta multidão de indigentes das cidades e seus sub-urbanos e pela generalidade dos aldeões com coirato enrijecido. A primeira república produziu pouco, em matéria de legislação e em condições materiais, apesar dos relatos cruéis e severos dos estrangeiros, referindo os portugueses como selvagens, numa época em que “…nem os marroquinos andam descalços”.

A Liga Portuguesa da Profilaxia Social foi fundada em 1924 por três jovens médicos (António Magalhães, Cândido Cosa e Veiga Pires) e uma das suas primeiras campanhas foi dirigida ao uso do pé descalço, considerando-o “…indecoroso, inestético e anti-higiénico”, através da publicação do livro “O Pé Descalço – Uma Vergonha Nacional que Urge Extinguir”, em 1928 e que viria a ser objecto de reedição para uma nova e intensa campanha dirigida ao norte do país, para erradicar os persistentes, em 1956. Em Agosto de 1926 foi publicado o decreto-lei nº 12073 que impunha:

a)      É proibido o trânsito de pessoas descalças na via pública das áreas das cidades, que serão delimitadas por postura municipal;

b)      As disposições poderão igualmente ser aplicadas a outras localidades por decisão dos governos civis;

c)       A transgressão do disposto será punida com uma multa de $50 a 2$00. A reincidência será punida com o dobro da pena.
Isto significa que me 1926 as autoridades apenas proibiam o uso do pé descalço dentro das cidades. Em simultâneo, o Estado Novo editou brochuras sobre a necessidade de erradicar estes usos, visando tirar das cidades mendigos, desempregados que podem trabalhar, vendedores ambulantes e outros parasitas que se servem de “…manha, insolência, ameaça, violência, etc.”. Naturalmente, o Estado Novo combinava o propósito de erradicação do pé descalço com a violência social da sua ideologia de direita, atacando a pobreza através de decretos e varrendo o lixo civilizacional para debaixo do tapete da classe dominante.
Com estas medidas poderemos dizer que o hábito do descalço nas cidades foi erradicado na década de 30 do século XX, com forte empenho dos governos civis e fiscalização da PSP. O uso manteve-se arreigado no mundo rural português, que representava em meados do século XX mais de dois terços da população.

Em Agosto de 1947, foi promulgado o decreto-lei nº 36448 que deu um novo impulso a este movimento profilático. A nova campanha foi simultânea com programas de vacinação anti-tétano e apoiada na sensibilização para a saúde pública. Com efeito, este fenómeno não era explicado apenas pelo argumento da pobreza, mas sobretudo pela habituação; os documentos da época consideravam que o Alentejo era a única região do país onde os rurais andavam calçados.
Na década de 50, muitas pessoas, mulheres e homens, foram apresentadas ao Tribunal de Polícia, depois de presas durante 1 ou 2 dias, quando eram apanhadas a circular descalças nas cidades e nas vilas, já que nas aldeias a liberdade era outra. Aqui viam-se mulheres com arcadas de ouro e pé descalço, no verão sempre e muitas vezes todo o ano. Viam-se homens com botas dependuradas ao ombro, ou tamancos metidos nos alforges, para calçar apenas na chegada à vila, evitando assim multas e chatices.

Onde está este uso do povo representado nos grupos de folclore?

Fonte: Jornal Folclore, nº 202, edição Dezembro 2012

7 comentários:

Anónimo disse...

Pelo que vejo na maioria dos grupos de folclore, o uso do pé descalço é muito esporádico. Na verdade, cinge-se apenas ao palco, depois de alguns elementos tirarem os socos ou outro género de calçado que, muitas vezes não está adequado ao seu traje.
Penso que se deveria refletir sobre isto, pois se esta componente, é mais um aspeto comprometedor da autenticidade do folclore.

Sly disse...

muito interesante.
no entanto, o decreto lei 12073 não fala de sapatos, deve ser outro...

Unknown disse...

o uso do pé descalço fora do palco é uma coisa mto complicada pois andar em alcatrão quente ou em terrenos repletos de "armadilhas" não é bom pra ninguem. Alguns palcos são também autenticas camas de pregos.

Anónimo disse...

Olá Sr. Carlos, os meus cumprimentos.
Sabe por acaso informar-me onde posso mandar fazer calçado de Folclore na zona Norte do país? Muito obrigada. Maria

ROB disse...

Bom dia, Maria!
Pode mandar fazer calçado de folclore no "Zé das Solas", em Braga, mesmo ao lado da Câmara Municipal, na Praça do Município.

ROB disse...

Todos os grupos folclóricos de pessoal ligado às actividades piscatórias dançam descalços.
O calçado, dentro de água, só atrapalharia e até se tornaria perigoso.

ROB disse...

Infelizmente tenho visto, principalmente em procissões com pescadores, estes usarem as típicas camisas de «escocês» mas de «blue jeans» e «havaianas» de plástico nos pés.
Infelizmente, aqui em Braga, na Semana Santa, alguns farricocos também «furam» assim a tradição descalça.